Roberto Beijato Junior

Roberto Beijato Junior

O TEMPO DA MODERNIDADE E O TEMPO DA REFLEXÃO

Roberto Beijato Junior

 

I – INTRODUÇÃO

Lembro-me, certa vez, de uma professora da qual fui aluno quando da graduação em Direito afirmar que “não se faziam mais juristas como antigamente”. Na época estava no segundo ano do curso de graduação e, com o passar dos anos, a afirmação da professora não teria como se mostrar mais precisa.

No entanto, indo além do Direito, é possível visualizarmos uma “crise” epistemológica e, por conseguinte, do próprio conhecimento, não apenas no Direito mas nas ciências humanas como um todo. A notícia de uma tal crise não é novidade. Heidegger já em 1923 informara-nos acerca da situação então prevalente e, da constante carência de sentido dos exames desenvolvidos a respeito de referida crise.[1] Passados quase cem anos da informação trazida por Heidegger, fato é que tal crise encontra-se longe de ser superada – ou mesmo de ser constatada em virtude do império do comodismo acadêmico – e, a bem da verdade, ao longo do tempo se naturalizara, sendo hoje vista como o próprio “modelo dado”.

Há, inquestionavelmente, uma superficialidade de sentido na maioria dos debates acadêmicos levados a intento, mormente no campo jurídico, onde para se dizer o óbvio, faz-se parecer que se está a dizer algo muito mais profundo do que o mero óbvio, em autênticas atuações teatrais destinadas a um público que acredita na atuação como se correspondesse à realidade. Não é a toa que, em especial no campo do Direito, se dê tanto valor, atualmente, às mais variadas formas de estelionato acadêmico que são, simplesmente veiculadas e apreendidas como conhecimento, quando na verdade não passam de uma reprodução técnica medíocre.

O que presenciamos no Direito, neste início de século XXI, mostra-se como uma tendência enfatizada na atualidade em diversos outros campos das relações humanas.  Desse modo, o foco do presente artigo será o de demonstrar a incompatibilidade entre o tempo da modernidade e o necessário tempo da reflexão, como um dos fatores que conduzem à crise moderna do conhecimento filosófico. Especialmente, as menções se farão com relação ao estudo do Direito e seu status acadêmico, sem olvidar, no entanto, menções de caráter geral.

Os motivos de tal tendência, ou melhor, as hipóteses para tal tendência, são diversas. Ao deparar-me com a contemplação da afirmação sobre a inexistência atual de juristas como os de outrora, penso que o problema crucial não é somente a suposta inexistência – num sentido geral – de juristas como os de antigamente, mas o fato primordial a ser levado em consideração é, ao contrário, o fato de na modernidade simplesmente não se pensar como antigamente.

Pretendemos abordar esta questão de forma direta nos próximos itens, expondo pensamentos próprios, uma vez que também na atualidade se mostra uma ênfase gritante ao mero estudo historiográfico da filosofia. Ao contrário, o efetivo exercício da filosofia depende da reflexão e do desenvolvimento próprio, personalíssimo do sujeito que filosofa. Preferimos, assim, abordar diretamente os problemas com os quais nos deparamos do que meramente descrever algo posto. Corremos, por claro, o risco de fazer uma “má” filosofia, mas ainda assim, muito mais útil que a restrição às descrições, uma vez que uma filosofia própria servirá sempre, ao menos, de estímulo ao desenvolvimento de outras reflexões filosóficas próprias.[2]

 

 

II – A CRISE DO PENSAMENTO MODERNO

 

O estudo do Direito, em especial no Brasil, evidencia uma crise epistemológica que não lhe é exclusiva, mas que em si se torna bastante nítida. A Ciência Jurídica se encontra, por certo, entre os fenômenos cruciais para compreensão das relações humanas e sociais. A sua essência ontológica[3] demonstra se tratar de fenômeno bastante amplo, e que vai, por certo, muito além dos estritos âmbitos normativos usualmente estudados e estimulados nas Faculdades de Direito.

O Direito, antes de tudo, inexoravelmente se trata de um instrumento político. Um instrumento do poder para a organização social. Temos um fenômeno bastante fecundo aos estudos filosóficos e que sem estes é reduzido à mera técnica. Não obstante, as faculdades de Direito no Brasil formam o tecnocrata medíocre, apto a tão somente reproduzir os conceitos postos, isto é, o arcabouço dado, tal como um gramofone, porém totalmente inapto à meditar, minimamente, sobre toda a variedade de conceitos do qual é destinatário. Os concursos públicos e exames da OAB revelam, de igual modo, uma busca pelo tecnocrata medíocre.

Um tal cenário já revela por si só uma crise epistemológica. Ora, se estamos diante de um fenômeno no qual em sua essência ontológica encontra-se, por certo, uma larga variedade de elementos axiológicos, políticos, econômicos, sociais, etc., a consequência lógica seria a de que sua abordagem epistemológica considerasse tais fatores como parte da essência do objeto abordado. Ao contrário, tudo aquilo que é mais relevante ao Direito – valores, sujeitos, política, etc. – é simplesmente ignorado em detrimento de um estudo técnico acerca dos conceitos jurídico-normativos, isto é, uma instância do conhecimento já dado, em que meramente se reproduz este arcabouço posto.

A técnica nos revela como fazer as coisas. O Direito é um curso extremamente técnico. Nele aprendemos os conceitos veiculados pelas normas jurídicas, aprendemos como redigir uma petição processual, qual o direito material aplicável e a ser veiculado pela instrumentalização processual, a quem dirigir referido pedido, etc., ou seja, aprendemos como operacionalizar o instrumental jurídico nos casos concretos com que nos depararmos na vida prática.

Uma tal faceta técnica do estudo do Direito é cabível à dogmática jurídica. O próprio nome (dogmática) já revela sua estrutura técnica. O termo advém da palavra dogma. Ora, o que são dogmas se não verdades apriorísticas? Isto é, dogmas são verdades inquestionáveis, insertas em determinado campo e que antes mesmo de qualquer experiência já se as tem como “verdadeiras”, advindo daí seu caráter apriorístico.

O termo “dogma” advém do grego “δοκεῖν” (dokein) que designa “doutrinar”, “impor”. Daí vemos que a própria instância dogmática do Direito é a instância composta pelas verdades apriorísticas do direito, ou seja, aquilo que não se põe à prova e se assume como verdadeiro, doutrinariamente.

Ao pensarmos, por exemplo, num dogma religioso. Se questiona o dogma religioso ou simplesmente se o cumpre? Simplesmente se cumpre o dogma religioso de forma impositiva, sem referência à questionamentos. O dogma jurídico, por sua vez, que é simplesmente operacionalizado, sem qualquer referência reflexiva, faz com que o Direito não seja nada além de uma “religião do Estado”, onde os destinatários da norma a reproduzirão sem questionar.

O Direito, enquanto fenômeno híbrido que é – vez que em sua essência reside um vasto conjunto axiológico – não pode ser abordado pela via da doutrinação (dokein) exclusivamente, vez que se assim for – e infelizmente, como assim ocorre atualmente – restará reduzido a uma religião do Estado, que camuflará seus intentos políticos sob as aparências da lógica formal.

Na gênese de toda produção jurídico-normativa temos o próprio poder e a política. Por isso acima se estabelecera que o direito constitui um instrumento da política. Neste ponto, destacamos que a elaboração normativa, a partir de sua gênese política é, nada mais que uma imposição axiológica. Ora, a norma jurídica possui o valor em sua essência. Ao eleger determinado valor e normatizá-lo, o legislador simplesmente faz uma escolha dentre outros valores possíveis e os privilegia sob o atributo da coercibilidade típica do Direito. No entanto, o Direito, ao receber referidos valores, simplesmente os aborda a partir de uma pretensão à “pureza” inconsciente no raciocínio jurídico moderno e que reduz a abordagem do direito aos estritos campos da lógica formal.

Um tal movimento já era enunciado pelo professor Miguel Reale ao traçar as bases de sua teoria tridimensional do direito.[4] Dirá o autor em questão que a abordagem completa do fenômeno jurídico se dá pela apreensão do direito enquanto “fato, valor e norma”, sendo que entre eles há uma relação dialética de implicação e polaridade. O fator do poder fica implícito em tal construção. Isto é, a todo fato se relacionam não apenas um, mas um conjunto de valores. Um destes valores é eleito e erigido à categoria de norma jurídica, passando, portanto, a receber os atributos da coercibilidade e da atributividade. Neste momento fica evidente que é o poder o fator determinante para a eleição do valor que será, ao final, escolhido dentre os demais incidentes sobre a base fática e que, portanto, será normatizado.[5]

O que temos, na essência é que os valores regularmente normatizados não passam, em sua origem, de um senso comum no bojo da sociedade, o que evidencia a importante constatação de Warat ao afirmar que o objeto de estudo da dogmática jurídica não passa de uma doxa politicamente privilegiada.[6] Tal é uma das afirmações fundamentais do autor em questão para que possamos compreender a sua noção de senso comum teórico dos juristas.

A partir do advento do positivismo jurídico e do seu simplismo – que acaba por ser muito sedutor aos acadêmicos mais acomodados, bem como de vasta utilidade ao poder – vemos que o Direito passa a ser abordado de uma forma medíocre, restrita às formas da lógica formal e nas quais simplesmente se ignora e se ocultam os reais fatores determinantes para a decisão jurídica.

Um dos caracteres básicos de qualquer ciência é, justamente, a transparência quanto a todas as variáveis sobre o resultado. O positivismo, ao fechar os olhos à vastidão da essência híbrida do Direito, simplesmente acaba por, através das formas, mascarar a real essência dos motivos determinantes por trás da decisão jurídica. Em que pese, portanto, o positivismo jurídico – em especial pelo modelo da teoria pura do direito de Kelsen – pretenda traçar limites objetivos de cientificidade para o campo do Direito, o que produz, em última instância, é um modelo anti-científico de abordagem do fenômeno jurídico.

Tal fato, entretanto, não é o problema a ser enunciado neste momento. Quando da elaboração da teoria pura do Direito – que teve sua primeira edição lançada em 1932, não obstante as bases fundamentais da mesma já estivessem descritas desde 1911 por ocasião da tese de livre docência de  Kelsen, intitulada Hauptprobleme der Staatrechtslehre – havia um cenário bastante propício ao desenvolvimento de uma teoria que se pretendesse pura para o Direito. Os motivos determinantes de tal cenário passam pelo não reconhecimento, até então, de um campo reservadamente científico para o direito, de modo que o Direito era encartado como capítulo das ciências sociais.

Tal cenário, aliado ao modelo predominante de ciência até então – que era o modelo descritivo e empírico das ciências naturais – fez com que existisse um cenário bastante propício ao desenvolvimento de uma metodologia de pretensão purista para o campo do Direito. [7]  

É possível concluir, pelo cenário existente à época – em que o direito se encontrava num limiar entre a ciência e a metafísica – que caso Kelsen não houvesse desenvolvido uma teoria pura do Direito, outro autor desenvolveria algo em sentido similar. A doutrina desenvolvida por Kelsen teve sua valia e sua justificativa ao tempo de sua edição e desenvolvimento. Contudo, o que causa espanto é que, passados quase 100 anos do desenvolvimento das ideias básicas que nortearam a primeira edição da teoria pura do Direito, o estudo acadêmico ainda esteja preso sob suas amarras e, pior, de forma inconsciente.

É neste ponto que podemos visualizar no Direito, o reflexo de uma modernidade fundada nos pensamentos superficiais e imediatistas, que se restringem ao simplismo medíocre em virtude da sensação de conforto propiciada pela ilusão de controle dos resultados.

O tempo em que vivemos é o tempo da velocidade, o tempo dos imediatismos e da frustração. Os homens de nosso tempo são os homens que vivem pela aparência e, sua essência corresponde a uma não essência, a um vazio.

Os períodos reflexivos são cada vez mais escassos, sendo que as pessoas, no geral, fogem do contato consigo mesmo. Há sempre um fator de desvio sobre as instâncias cognitivas reflexivas, sempre algo que desvia o sujeito de seu vazio fundamental.

Não é a toa que o século XXI venha se amoldando ao mundo distópico antevisto por Huxley já em 1932[8]. Vemos o aprofundamento deste admirável mundo novo, onde a aparência é encarada como essência e, esta, por sua vez, é sufocada pelo tecnicismo e a dependência humana sobre a aparente segurança gerada pelo mesmo.

A literatura distópica, através de obras como 1984 de George Orwell, admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e  fahrenheit 451 de Ray Bradbury, demonstra como a sociedade do século XXI é, por si só, distópica. Diversos caracteres destas obras, escritas, em sua maioria na primeira metade do século XX (a exceção de fahrenheit 451 que fora publicado pela primeira vez em 1953) evidenciam que seus autores, mais do que uma obra literária, captavam, na verdade, tendências que vieram a se confirmar na atualidade e, outras que caminham para sua confirmação em breve.

O momento que vivemos é o da doutrina da felicidade – sendo esta confundida com o constante estado de euforia – em que o sujeito faz de tudo para não ingressar em estágios de contemplação e reflexão, cingindo-se à alternar diversos métodos de desvio do vazio fundamental. O tempo da solidão reflexiva é abominado quase como que uma doença em nossos tempos.

Ao refletirmos sobre a literatura distópica mencionada, basta vermos, por exemplo, em fahrenheit 451, um dos meios utilizados pelo Poder local para fazer com que nenhuma pessoa refletisse, impedindo o desenvolvimento do pensamento crítico humano. Tal meio era simplesmente a onipresença da televisão. Isto é, em cada ambiente que as pessoas entrassem havia sempre televisores bombardeando as pessoas de informações e, desviando-as de si mesmas, ou seja, desviando-as da apreensão do vazio propulsor da reflexão. A obra em questão fora escrita em 1953, mas torna-se indubitável sua concretização em nossos tempos a partir dos smartphones que tornaram-se uma extensão do corpo das pessoas. Não importa onde a pessoa esteja, ela está sempre conectada aos outros, sempre com constantes desvios, sempre sendo bombardeada por informações. Nunca está sozinho este homem do século XXI, este homem que abomina a solidão e a si mesmo.

O advento dos smartphones nada mais é do que a onipresença da televisão antevista em 1953 por Bradbury. As redes sociais, por sua vez, nada mais são do que ambientes nos quais os sujeitos podem viver o mundo virtual das aparências, já que a essência da modernidade é, justamente, a negação da própria essência. Assim, nas redes sociais se possui a imagem que se queira que os demais vejam, se fala sobre o que se quiser falar, mas raramente se lê o que os outros têm a dizer, uma vez que o objetivo precípuo das redes sociais, em sua primariedade, é justamente, servir como elemento de desvio do vazio humano e, de impedimento à instância reflexiva.

Vivemos uma refutação a qualquer esforço cognitivo. O próprio pensamento, por si só, mostra-se como algo por demais desconfortável para a larga maioria das pessoas na atualidade – e nisso inclui, por óbvio e, mais grave, o meio acadêmico – de modo que os pensamentos acríticos e meramente reprodutivos imperam. A instância crítica do pensar é o elemento que pode produzir alterações, seja no próprio sujeito, seja no próprio meio social. É evidente que a contemplação gerará desconfortos. Toda mudança gera desconfortos, uma vez que o sujeito sai do local conhecido e caminha para um local ainda “a ser”.

A doutrina da constante felicidade da atualidade criou um ser humano fraco, medíocre e estúpido, que evita qualquer perturbação à sua constante euforia e às aparências virtuais que se tornaram mais reais que a própria realidade. Desse modo, vemos que o próprio pensar tornou-se uma atividade evitada pela contemporaneidade.

Não é a toa que os desvios do vazio se mostrem tão enfáticos em nossa época. Seja através de smartphones, de mecanismos virtuais de absorção psicológica, ou até mesmo por meios químicos. O consumo de álcool, bem como de drogas – lícitas e ilícitas – encontra-se em constante ascensão. São como remédios que conforme são consumidos ao longo do tempo tornam o sujeito resistente e, fazem com que cada vez seja necessária uma dose maior para produzir o mesmo efeito.

O que importa para a atualidade é a constante euforia, ainda que se viva à base de uma felicidade artificial, que em última instância elimina os impulsos da existência necessários ao aprimoramento do próprio homem.[9]

Outro fator também presente nas obras distópicas – neste caso nas três obras mencionadas – e que se amolda perfeitamente à atualidade é a refutação a qualquer tipo de atividade solitária, a qualquer momento de solidão, que permitiria o desenvolvimento do momento reflexivo. Em tais obras o poder organiza uma série de atividades coletivas que os sujeitos participam ativamente, não lhes restando qualquer tempo de solidão.

A solidão constitui um dos elementos imprescindíveis ao pensamento reflexivo. É na solidão que o sujeito encontra-se consigo mesmo e consegue desenvolver a contemplação filosófica, produzindo pensamentos críticos sobre as questões do mundo da vida. A solidão torna o sujeito mais forte, não dependente, confortável consigo.

No entanto, atualmente, todo tipo de angústia, de desconforto, é visto como algo não desejado e, a partir de um modelo que prega a constante felicidade, como algo patológico. Se esquece, no entanto, que é a partir da agitação das águas que o mar pode se tornar mais calmo e que aquele que não possui cicatrizes da vida é porque não viveu efetivamente, mas apenas sobreviveu. Temos uma legião de artificialmente felizes, cujos desvios do vazio fundamental servem tão somente para abafar o doentio modelo de vida apregoado pela sociedade moderna, na qual o sujeito carece de qualquer individualidade, conduzindo toda sua vida e sua existência a fins mercadológicos imediatos.

Daí porque possamos afirmar que o sujeito de nosso tempo é um sujeito absurdamente estúpido e fraco. Não por outro motivo é um sujeito bastante propenso ao consumismo e, portanto, bastante interessante ao modelo capitalista de produção. Ora, o próprio consumo nada mais é que mais um dos desvios do vazio fundamental, ao qual a publicidade liga a ideia de felicidade. Vende-se a ideia de que o consumo pode lhe trazer a felicidade, de modo que o sujeito destina toda sua existência e toda sua energia para a aquisição de bens, isto é, para algo apolítico.

A produção moderna de um sujeito débil já era antevista por Nieztsche desde o século XIX, e, é bastante útil ao poder e aos detentores dos meios econômicos de produção massificada, vez que um sujeito medíocre e infeliz é um consumidor muito mais ávido do que o sujeito satisfeito.

A vontade de potência, aquele motor ativo da vida do homem espiritualmente nobre, esta vontade de conquistar, de exercer posturas ativas foi reduzida ao ativismo pelo dinheiro e nada além disso. Ativismo este que, em última instância, é revertido ao consumo constante. Evidencia-se aqui o niilismo incompleto preceituado por Nieztsche e seu aprofundamento na modernidade. Aquilo que outrora se fazia em prol das divindades, passa a se fazer pelo Estado e pelo Capital. Há apenas uma transposição de Deus para o Estado, um niilismo parcial e que reforça a transvaloração moral na qual o modelo estimulado, reproduzido e naturalizado é a moral de rebanho.

Os anseios da vontade de potência ativa – para diferir do que Nieztsche denomina de vontade de potência passiva, típica da moral de rebanho[10] – demandam a solidão para o pensamento, demandam, também, constante postura ativa naquilo que sua contemplação revela que deva ser buscado. Demanda, portanto, o “desconforto” do pensamento, a lapidação que gera o aprimoramento.

Ao contrário, para o nosso tempo, “bom” é o homem fraco das aparências, a ovelha de rebanho. O homem que expende toda sua energia com o trabalho em prol da aquisição e acumulação de cada vez mais bens. O homem que não vive, mas sobrevive, conformado a tudo aquilo que já é dado e naturalizado. Vivemos o tempo do não pensar.

Retomando a menção às sociedades distópicas – que muito se aproximam da nossa própria – é de se relembrar que por trás do aparato de poder organizado em tais sociedades havia, por óbvio, um Direito. O Direito de tais sociedades distópicas seria um Direito que permitiria o desenvolvimento de estudos críticos ou, ao contrário, seria um Direito dogmatista – também como o nosso – ?

Por evidente que o não pensamento afasta o raciocínio crítico, de tal sorte que o direito resta dogmatizado, mecanizado, trabalhando através de fórmulas simplistas que dispensam o raciocínio crítico, reduzindo-o a uma instância de reprodução do “dado”. Ora, e não é exatamente isso o que vivemos na atualidade e, exatamente isso que as Faculdades de Direito propiciam no Brasil?

Basta analisarmos: quantos semestres da graduação em Direito têm em sua grade a matéria de direito civil? Praticamente todos. Em quantos semestres, por outro lado, se estuda filosofia? em regra, na maioria das faculdades, um único semestre, quando muito chegando esse período a dois semestres. Isso para não mencionar as faculdades em que o ensino se tornara tão esdrúxulo e mecanizado que as matérias propedêuticas e a filosofia são ministradas à distância.

Justamente as únicas disciplinas totalmente inconciliáveis com o método à distância, justamente as únicas que demandam a intervenção crítica, a dialética, são renegadas à virtualização medíocre. Mas é claro, tais matérias não são cobradas largamente no exame da OAB, nem nos concursos públicos, onde a valorização se debruça sobre a reprodução de conhecimentos e não sobre a produção reflexiva.

O direito estudado é extremamente simples: uma vastidão de conceitos prontos que são apreendidos e após, reproduzidos. Um teatro no qual se faz parecer que se fala algo além do mero óbvio, para fins retóricos e para enaltecer a vaidade de quem é suficientemente medíocre para acreditar na encenação teatral. Não é a toa possa-se afirmar que “há verdades que não penetram em nenhum lugar melhor do que nas cabeças medíocres, porque são feitas na justa medida; há verdades que não têm atrativo e encanto senão para as inteligências medíocres”.[11]

Um tal modelo serve de forma bastante útil à violência simbólica que predomina na atualidade e que por seu próprio caráter simbólico passa de modo despercebido, naturalizada. É um modelo útil tão somente ao poder. Por meio de tal modelo mascara-se todo o arcabouço ideológico por traz da produção normativa e se o apreende de modo puramente lógico.

Neste ponto, cabe relembrar que a lógica é um conhecimento que tem por características a atemporalidade e a acriticidade. Desse modo a redução do direito à lógica, não obstante forneça a ilusão de controle dos resultados, simplesmente mascara toda a vastidão que encontra-se na essência do fenômeno jurídico. Por ser um conhecimento acrítico resta bastante útil ao poder, que consegue facilmente veicular a mensagem de que as proposições normativas não constituem atos de vontade do detentor da autoridade no caso em questão, mas atos de conhecimento, donde não haveria outra possibilidade, por meio do que gera um forte efeito de conformação social, anestesiando os sujeitos destinatários da proposição em questão.

O Direito excessivamente medíocre que é valorizado hoje não é uma exclusividade sua, mas sim uma repercussão que sofre em virtude da crise do próprio pensamento moderno, isto é, do próprio não pensar moderno, que se tornara uma característica do homem do século XXI.

III – A CORRUPÇÃO MERCADOLÓGICA

Outro fator de propulsão ao cenário em que vivemos e que se aproveita do sujeito carente e medíocre da atualidade é o próprio mercado, por certo.

Como dissemos anteriormente, a modernidade e sua doutrina da felicidade produziu um homem fraco, infeliz e dependente dos mecanismos simplistas de desvio do vazio fundamental. O próprio pensamento é indesejado e encarado como um fator de desconforto, que elimina o estado anestésico de euforia constante propiciado pelos incessantes desvios do vazio imanente.

A atuação mercadológica sobre um indivíduo de tal espécie se torna muito mais profícua e lucrativa, vez que tal é o sujeito mais dependente do consumismo. Deve-se consumir quaisquer espécies de banalidades apenas pelo efeito imediatista de produção de euforia que tal aquisição proporciona.

O mercado incute mais facilmente no sujeito medíocre a crença de que ele necessita de algo – que na verdade não necessita – para adquirir (e também consumir) a felicidade. Para a ovelha de rebanho do século XXI os produtos que podem fornecer tal estado anestésico devem proporcionar, por sua vez, o efeito imediato e desprovido de qualquer esforço cognitivo, vez que pensar, por si só, já é um esforço muito além do que as fracas ovelhas podem suportar.

Assim, vê-se a partir da fabricação de um homem fraco, a criação nele de desejos igualmente medíocres, uma vez que o homem fraco não deseja aquilo que é nobre, que demanda o esforço ativo e cognitivo, mas sim aquilo que penetra em sua mente sem qualquer referência de cognoscibilidade.

A partir de tanto, o mercado passa a produzir um leque de produtos destinados à ovelha de rebanho, ou seja, todo um arcabouço de produtos que podem ser imediatamente assimilados pelos cérebros das ovelhas, produzir-lhes uma curta euforia e, em breve, gerar-lhes a nova necessidade de consumir algo absolutamente prescindível.

A partir de tal movimento nota-se que a ovelha de rebanho – dependente dos fatores de desvio – já não mais possui sequer a capacidade para distinguir aquilo que é meramente medíocre e lhe é destinado a servir como desvio, e aquilo que necessita de um aprofundamento reflexivo. Tal fato se dá porque a própria constatação demandaria uma instância reflexiva que raramente se exerce na atualidade.

Assim, vê-se que a produção de banalidades passa a tomar conta de todas as instâncias das relações humanas. Tal como o mercado fornece desvios imediatistas para os consumidores da felicidade artificial produzida pelo desvio, a lógica de mercado passa a adentrar todos os tipos de relações humanas, a saber, por exemplo: as relações de amizade e familiares, as relações – pretensamente – acadêmicas mantidas nas universidades e, pior, o próprio papel das universidades neste mundo de ovelhas.

Tem-se assim um movimento de aplicação da lógica de mercado a todas as instâncias das relações humanas. Aquilo que não propicia um rápido e imediatista desvio do vazio imanente é rapidamente descartado e negligenciado, vez que sua compreensão é por demais desconfortável para o homem do século XXI.

Assim, a lógica de mercado não apenas fabrica desejos desnecessários – porém lucrativos – no homem fraco, como passa a corromper todas as instâncias para que se tornem “atrativas” a esse mesmo modelo de homem/ovelha.

É assim que não apenas típicos produtos, mas o mercado corrompe também as artes, a música, e, por óbvio, a própria universidade.

Para constatar este cenário basta pensarmos, na atualidade, por exemplo, na espécie de música que se difunde. A música, como espécie de arte, busca a representação do belo. Este, na música, corresponde à harmonia entre as notas que compõem as frases musicais. Qual é, no entanto, o tipo de “música” que é propagado na atualidade? Digo não apenas, por óbvio, no cenário brasileiro, mas em especial na cultura de massa americanizada. Tratam-se de músicas artificiais, sem alma, sem espírito, com letras que não remetem o ouvinte a qualquer instância cognitiva. As letras, por óbvio, precisam ser compreendidas sem o recurso do pensamento e, assim, são compostas por chavões que penetram a memória das ovelhas, são reproduzidas efusivamente por alguns meses e logo depois são deletadas das rádios e das memórias de todos, que passarão a ser ocupadas por um novo chavão estúpido.

A música difundida largamente no século XXI não se trata sequer de arte – pois longe encontra-se de representar qualquer instância estética -., tratando-se só de um conglomerado de sons acompanhado de um letra carente de significado mas que é facilmente vendível para as ovelhas.

É evidente que na atualidade se produz, também, música de qualidade. O ponto que buscamos evidenciar aqui, no entanto, é o espaço ocupado pela verdadeira música, que na atualidade é absolutamente ignorada pela grande massa composta por homens ovelha, sendo reservada à obscuridade para um pequeno grupo de pessoas que ainda sente o desconforto de constatar o vácuo no qual estamos inseridos. O que se evidencia neste ponto, é apenas o fato de que a verdadeira música não encontra espaço num mercado destinado ao consumo das ovelhas. Isto porque a própria música – e as demais artes – sofreu pela corrupção mercadológica que se aponta neste item. Assim, em vez de a música ser direcionada à representação do belo, esta é desenvolvida para ser um simples conglomerado de sons facilmente vendível e, por óbvio, para que assim o seja, sem gerar qualquer esforço cognitivo.

A mesma corrupção mercadológica é vista no campo do conhecimento. Basta vermos o papel atual da maioria das universidades brasileiras. Neste ponto, vamos focar os exemplos sobre a corrupção mercadológica no ensino e na produção do “conhecimento” jurídico, onde, de fato, a questão se mostra extremamente visível.

A situação dos cursos de Direito no Brasil é alarmante. Currículos medíocres, excessivamente tecnocratas, nada além de um preparatório para o exame da OAB. O que importa para a larga maioria das universidades não é, nem de longe, a produção de conhecimento qualificado, ou mesmo a incitação à atividade de pensar, que por certo compõe – ou deveria compor – a base de qualquer ambiente voltado ao conhecimento.

Ao contrário, vemos que as Faculdades de Direito no Brasil se tornaram apenas empresas. Como tais, se destinam tão somente ao lucro e mais nada. Buscam a “bonita” aparência de declararem que “x” % de seus alunos foram aprovados no último exame da OAB, ou que segundo o ranking “y” é a melhor universidade de referida localidade, etc., todo o mesmo “bla bla bla” publicitário de sempre, para atingir seu potencial mercado consumidor.

Impera o mais autêntico estelionato acadêmico. Vendem-se cursos de Direito onde a grande maioria dos docentes finge que ensina alguma coisa e os discentes, por sua vez, fingem que aprendem. Trata-se apenas de um grande teatro, no qual, infelizmente, há aqueles que acreditam na encenação e, posteriormente se decepcionam.

Qual é o papel de uma universidade?[12] Por certo a resposta não pode ser outra senão a de propiciar um ambiente adequado e propício ao desenvolvimento do saber e conhecimento humanos. A universidade deve buscar o aprimoramento do pensamento humano com vistas, por conseguinte, ao aprimoramento da própria sociedade. Trata-se de um papel de extrema relevância, que por sua vez demanda – ou deveria demandar – idêntica responsabilidade por parte de tais instituições e por parte do próprio governo em sua função de supervisão sobre tais entidades.

Não é, por óbvio, o que se verifica no Brasil. As universidades sofrem descaradamente com a ora noticiada corrupção mercadológica. Por conseguinte, o papel social que deveriam exercer acaba, por vezes, se tornando um autêntico desserviço social. Analisemos um pouco referida corrupção no âmago do ensino jurídico, e que nos últimos anos vem se evidenciando e acentuando cada vez mais.

Apenas para já saltar aos olhos de início referida corrupção, cabe destacarmos que atualmente, o Brasil, sozinho, possui mais faculdades de direito que o resto do mundo inteiro! Enquanto o mundo inteiro possui cerca de 1.100 cursos superiores de Direito, somente o Brasil, isoladamente, atingiu em 2015 a marca de 1.308 cursos superiores de direito em funcionamento.[13]

No ano de 1995 o Brasil contava com apenas 165 faculdades de Direito. Em 2001 esse número passou para 505 cursos. Em 2014 atingimos a marca de 1.284 cursos e, em 2015, chega-se ao número de 1.308 cursos funcionando regularmente no Brasil.[14]

Ora, se somarmos o número de faculdades de direito existentes em todo o globo, chegaremos a um número próximo a 1.100 faculdades. O Brasil, isoladamente, consegue ultrapassar o absurdo número de 1.300 cursos. Os números são gritantes e dispensam largas digressões acerca da evidente corrupção de mercado sobre o ensino jurídico.

Num cenário absurdo como este, torna-se evidente que a gigantesca maioria das universidades existentes no Brasil nem de longe possui algum compromisso com a formação do pensamento. O único compromisso de tais instituições é com o almejado – e bastante gordo – lucro.

A qualidade do ensino supera o esdrúxulo. Temos uma legião de tecnocratas que, após se formarem à base da tecnocracia irão ensinar outra crescente legião de futuros tecnocratas as bases da “reprodução” do conhecimento.

Torna-se evidente que num cenário como o existente não há, pela maioria das universidades, compromisso com o próprio papel que deviam exercer. Torna-se curioso, ademais, até mesmo como a mecanização do ensino vem dilapidando a maior base de qualquer ambiente propício ao ensino, qual seja: a autonomia do docente. Claro que o mercado não elimina a autonomia docente de forma expressa. A lógica da modernidade trabalha com a violência simbólica. Assim, inserem-se “conteúdos programáticos” medíocres aliados à “avaliações integradas” para toda a instituição. Isto é, trata-se de uma forma simbólica de dirigir o ensino a partir de currículos programáticos tecnocratas e direcionados à mecanização do saber com o fim único de servir de parâmetro para os exames da OAB, concursos, etc.

Não é a toa que as faculdades de direito atuais focam apenas numa instância reprodutiva e dogmática do saber e descartam, a todo instante, as disciplinas de cunho crítico e, efetivamente necessárias à evolução social através da reflexão sobre o estado de coisas posto. Para enxergarmos referida situação, basta relembrarmos quantos semestres são lecionados de direito civil nos cursos de direito e quantos são destinados ao estudo da filosofia, sociologia e demais matérias tidas como propedêuticas, mas que na verdade são essenciais.

O saber dogmático do direito é essencialmente técnico e reprodutivo. Isto é, trata-se de uma larga gama de verdades apriorísticas – dogmas, portanto – que são apreendidas pelos sujeitos e, a partir daí, meramente reproduzidas. Trata-se, portanto, de uma instância meramente técnica. Sem a instância reflexiva, ou seja, sem a instância zetética, os dogmas serão reproduzidos de forma acrítica e bastante simplista, o que por óbvio somente será útil ao poder posto e à manutenção do estado de coisas.

A universidade, por excelência, é o ambiente destinado à crítica, à reflexão, à produção das propulsões e impulsos para apreensão ontológica do estado de coisas necessário à mudança e evolução social. Ao contrário, as universidades atuais, corrompidas pelo mercado, buscam apenas a majoração de seus lucros. Para tanto, norteiam todo seu currículo em consonância com exames tecnocratas que, ao final, caso logrem êxito em aprovar boa parte de seus alunos, terão uma publicidade positiva para atrair mais consumidores ou, quem sabe, um “selo de recomendação” de algum órgão.

Muito admira que o governo permita a proliferação de tantas faculdades negligenciando a mínima seriedade do ensino. No entanto, as notícias atuais revelam que a política brasileira também longe se encontra de ser norteada por qualquer critério de seriedade, imperando sempre as conveniências e o poder do capital.

Outro ponto é visualizarmos a ênfase dada pelas próprias instituições aos estudos críticos, ainda que extraclasse. Como a vasta maioria é composta por “acadêmicos acomodados” e que se sentem confortáveis sob os estreitos limites da dogmática – que não lhes propicia o desconforto do pensamento – mesmo os programas de iniciação científica das faculdades raramente contemplam algum projeto de cunho crítico, restringindo-se àqueles de reprodução dogmática, ou seja, restringindo-se à produção de “mais do mesmo”. As faculdades de Direito e os próprios “juristas”, portanto, têm encarado o fenômeno jurídico na condição de escravos da técnica, ou seja, vislumbram o horizonte jurídico somente a partir da técnica e jamais a partir da instância reflexiva.

Lamentável é a corrupção mercadológica sobre as universidades brasileiras. No entanto, conforme tem-se tentado sustentar, trata-se de uma corrupção que atinge a generalidade das relações humanas.

Outro exemplo que pode ser traçado para evidenciar nosso ponto é o das próprias publicações jurídicas. As grandes editoras, que são também, por óbvio, empresas, buscam publicações de maior “interesse comercial”, ou seja, publicações mais facilmente vendíveis. Diante de todo cenário descrito até então, qual o tipo de publicação, portanto, que é antevisto pelas grandes editoras e, que recebe maior repercussão e difusão? Por óbvio que são as obras de menor profundidade, que podem ser assimiladas com o menor esforço cognitivo possível.

Não é a toa que vemos que obras meramente descritivas como, por exemplo, manuais e cursos, obras para concursos públicos e exames da OAB vendem largamente e são reiteradamente publicadas por referidas empresas. As obras de índole filosófica e reflexiva, por sua vez, são deixadas de lado e publicadas por editoras de menor porte, muitas vezes tendo o próprio autor que financiar a publicação ou parte dela.

Para exemplificar referida situação, pensemos nas revolucionárias – para o pensamento jurídico e filosófico – obras do professor Luis Alberto Warat. Poucos são aqueles que, nas mais de 1300 faculdades de direito existentes em solo brasileiro sequer ouviram falar do mesmo. Seus estudos ficam reservados àqueles que sentem o incômodo do vazio moderno e, buscam algo além. É, portanto, reservada aos acadêmicos não acomodados, àqueles que sentem o incessante pulsar pelo conhecimento. Suas obras, por sua vez, não foram publicadas pelas grandes empresas (editoras) ávidas por lucros e displicentes quanto ao papel que deveriam fomentar, ou seja, o da difusão do conhecimento. Tais obras, por óbvio, não encontram-se entre os best sellers do direito, vez que exigiriam um aprofundamento reflexivo muito maior do que as ovelhas encontram-se dispostas a realizar.

Publica-se, por outro lado – agora sim pelas grandes editoras – obras tais como “Resumão OAB”, “Como passar no concurso X”, “questões comentadas da banca examinadora Y”, “Modelões de acordo com o Novo CPC”, etc., em outras palavras, obras que se limitam a reproduzir debilmente a instância do que já é posto, e por certo venderão milhares de cópias.

O mercado, destinado a criação de um homem débil que, por certo, é mais propenso a ser um ávido consumidor, termina por fazer com que se negligencie justamente aquilo que é personalíssimo em cada um de nós, ou seja, a nossa potência reflexiva e criadora.

Retomando os exemplos dados, pensemos nas tradicionais obras de direito civil. Se estudarmos um tema de direito civil, por exemplo, o tema de direitos reais pela obra da referenciada Maria Helena Diniz ou do Silvio Venosa, ao final, não atingiremos um resultado bastante próximo? A resposta é positiva. Isto porque os manuais de direito civil, enquanto estudos dogmáticos, destinam-se à reproduzir descrições apreendidas previamente. Abstrai-se em tais construções a figura do autor. Limitando-se à reprodução do posto, o que temos é que a dogmática não constitui um conhecimento individualizado. Ao contrário, trata-se de uma descrição reprodutível por muitos. Faltando ambos os autores mencionados, pode-se buscar um terceiro, um quarto ou um quinto manual de direito civil de autores diversos e, ainda assim, o resultado atingido será bastante próximo.

É na filosofia que se encontrará a individualidade criativa do saber. É na filosofia que as potencialidades do pensamento humano afloram de forma livre e independente. Ao estudarmos dois filósofos distintos, os resultados jamais serão os mesmos. Isto porque a filosofia constitui o conhecimento personalíssimo por excelência. Após o falecimento de um filósofo, é impossível a sua substituição. Ninguém jamais poderá produzir o que este filósofo produziria, encerrando-se sua obra. O filósofo é, essencialmente, insubstituível e, aqui, quando se fala em filósofo se refere àqueles que produzem a filosofia própria, de primeiro grau, e não aqueles que se restringem a descrever o pensamento filosófico de outro pensador, de forma historiográfica.

Poucos serão aqueles que desafiarão a ortodoxia moderna e, aqueles que o fizerem não receberão muita repercussão nos meios acadêmicos em geral. Dezenas são aqueles, no entanto, que não fornecem nada além de “mais do mesmo”. Temos centenas de autores explicando os conceitos de jurisdição, condições e elementos da ação no direito processual; os conceitos de tributo, poder e competência no direito tributário; elementos do contrato de trabalho no direito trabalhista, etc., que reproduzem a matéria mecanicamente, sendo, portanto, absolutamente substituíveis, tais como uma peça qualquer numa máquina.

Alguns, no entanto, dedicaram suas vidas aos estudos filosóficos e críticos, sendo insubstituíveis. Aquilo que produziram em vida jamais poderá ser reproduzido por ninguém. A fonte de tais pensamentos é a intuição personalíssima do próprio sujeito, daí seu caráter insubstituível. Qualquer um pode reproduzir conceitos dogmáticos em certa uniformidade e, destacar eventuais discussões jurisprudenciais que existam na aplicação de referido conceito. As intuições necessárias à crítica, ao contrário, residem no âmago da subjetividade, sendo insubstituíveis por excelência.

Já dizia Orwell que “qualquer um que desafie a ortodoxia predominante se vê silenciado com uma eficácia surpreendente. Uma opinião genuinamente destoante quase nunca recebe a atenção devida, nem na imprensa popular, nem nos periódicos mais intelectualizados”.[15]

Assim, a corrupção mercadológica atua no sentido de estimular a produção do homem de rebanho, que somente reproduz o que lhe é posto de forma acrítica. Aqueles que reproduzem de maneira medíocre são alçados ao brilhantismo e, assim, as ovelhas se espelham neste, acreditando que o verdadeiro conhecimento reside neste mundo de aparências produzido pelo mercado.

O verdadeiro conhecimento, reflexivo por excelência e, por conseguinte, bastante incômodo ao poder encontra-se bem longe dos holofotes do “sucesso”, onde imperam as vaidades banais e o estelionato acadêmico.

Desse modo, o que se pretende aqui, neste tópico é justamente evidenciar como o mercado contribui para a produção de um homem débil – que lhe é, por sua vez, muito mais lucrativo – e como tal corrupção atinge a generalidade das relações humanas. O que o Direito e as Faculdades de Direito sofrem pelo mercado nada mais é do que o reflexo de uma situação generalizada.

 

IV – O TEMPO

O tempo constitui o elemento necessário à construção das ideias e à desconstrução dos entes postos no mundo material. Recorrendo a Kant, o tempo seria colocado, ao lado do espaço, como uma das intuições gnoseológicas puras e de cunho apriorístico.[16]

Nosso problema não é o problema posto por Kant, ou seja, o problema da possibilidade da experiência em geral. Nosso problema é de cunho mais “humano”, assim poderíamos dizer.

A vida humana pode ser considerada um fenômeno existente no tempo. A nossa finitude existencial é um dado imanente e – felizmente – incontornável. Isso invariavelmente significa que àquilo que dedicamos nosso tempo estamos, também, dedicando nossa e vida e, portanto, morrendo por aquilo.

O passar do tempo consome nossa existência e, por conseguinte, ao utilizarmos nosso tempo em prol de algo significa que, ainda que parcialmente, estamos morrendo por esse algo.

Tal afirmação faz-nos refletir acerca dos objetos destinatários do tempo empregado pela larga maioria das pessoas em nosso tempo.

Em tal reflexão vemos que objetos absolutamente imediatistas imperam na modernidade. O tempo é empregado para tudo aquilo que favorece às aparências e se afasta da essência. Não é a toa que em um tempo como o atual as redes sociais façam tanto sucesso e consumam tanto o tempo – e a vida, portanto – das pessoas.

A vida humana, fenômeno existente no tempo e exaurida pelo mesmo, é consumida pelos prazeres do imediatismo cotidiano e pelos desvios produzidos pelo consumo desenfreado, pela busca incessante por padrões sociais que jamais se atingem – mas que reforçam a necessidade do constante consumo – e, como uma droga, tornam o sujeito dependente. Também como uma droga, deixam de fazer efeito, demandando cada vez mais e mais estímulos para que o desvio possa ser produzido e o vazio angustiante da existência possa não ser defrontado.

Certo é que o tempo que compõe a existência humana é consumido com os desvios. Do nascimento à morte do sujeito, o tempo passa de forma anestesiada, como efeito de uma incessante e já naturalizada violência simbólica que domina a atualidade.

Assim, a existência humana é renegada ao ponto da irrelevância, onde sofre maçante violência pela supressão dos intentos individuais através da imposição de padrões coletivos que somente à manutenção do poder interessam, vez que produzem um sujeito medíocre e acrítico, um sujeito que reforça os padrões dominantes sem se dar conta de que tais padrões não são seus, mas ao contrário, são fruto de uma imposição há muito naturalizada.

Tais padrões produzem o servo voluntário do modelo posto, ou seja, o sujeito débil o suficiente para não perceber a supressão de toda sua existência em prol de um sistema que em nada lhe beneficia, mas ao contrário apenas o explora e, mediante seu esforço, se mantém o benefício de um reduzido grupo.

Tal sujeito, não se dando conta da violência simbólica que lhe conduz a existência, não apenas deixa de combatê-la, mas passa a desejá-la, uma vez que a violência simbólica, diferente da violência explícita, se propagada e se naturaliza no meio social, tornando-a muito mais lesiva e dotada de uma potência de manutenção muito mais elevada, uma vez que passa despercebida, e, como se correspondesse à ordem natural das coisas.

Em tempos de violência explícita, as pessoas tinham ao menos a possibilidade da revolta, também manifestada por uma violência explícita e dirigida a um alvo específico. Ainda que numa luta absolutamente desigual, era possível o sujeito empregar um sentido prático para sua existência e para o tempo a que corresponde. Isto é, era possível viver por algo além de sua individualidade, um “bem maior” por assim dizer.

A atualidade, ao contrário, massacra o sujeito pela violência simbólica. Tal é tanto mais lesiva que a violência expressa, uma vez que passa despercebida no seio social, naturalizando-se e, após, passando até mesmo a ser desejada pelas vítimas da mesma. Chega-se ao ponto, portanto, em que a manutenção do poder passa a ser reforçada a partir da própria naturalização da violência, que produz o sujeito que deseja a manutenção daquela forma de mundo da vida. A violência simbólica, portanto, se perpetua e, com o tempo se agrava.

O sujeito contemporâneo vive uma felicidade artificial, em constantes desvios dos anseios de sua existência. A doutrina da felicidade típica do momento em vivemos e a repulsa por qualquer tipo de desconforto à euforia constante que é confundida por felicidade instiga tal modelo de sujeito.

O desvelamento sobre a essência do nosso agir e dos fenômenos com os quais nos deparamos no mundo da vida reside tão somente na filosofia. A filosofia demanda a reflexão, demanda o tempo, demanda esforço cognitivo. Numa era como a atual, uma era de imediatismos, parece não haver lugar para o tempo do pensamento.

Constatamos, assim, claramente, uma dicotomia entre o tempo da modernidade e o tempo da reflexão. O tempo das coisas na modernidade é mais um fator de propulsão à excessiva mecanização do conhecimento e, em especial, do conhecimento que deveria ser de índole humana e, por consequência, que necessita do tempo do amadurecimento das ideias, o tempo próprio da reflexão.[17]

Curioso é ver como o homem do século XXI é um ser morto em própria vida. Retomando o que já falamos sobre a vida ser um fenômeno existente no tempo, fato é que devemos pensar, então, no que vem sendo despendido este tempo. O dia possui 24 horas e esse é um fato imanente. Imaginemos, assim, que vivamos 75 anos. Se dormirmos 8 horas por dia, destes 75 anos teremos passado 25 anos dormindo. Restam 50 anos em estado de vigília. Considerando, no Brasil, a jornada de trabalho de 8 horas diárias, temos que mais um terço da vida é consumida pelo trabalho, que em regra será um trabalho mecanizado e, também, um desvio de qualquer reflexão. Sobram outros 25 anos apenas de vida em que não se está dormindo ou trabalhando. Destes 25 anos descontaremos o tempo gasto em atividades como comer, tomar banho, o tempo perdido no trânsito – que numa cidade como São Paulo atinge a média de 3 horas diárias, ou 30 dias no ano, para a maioria da população -. Sobrará, a partir daí, um tempo menor ainda em que possamos estar efetivamente sozinhos em estado de reflexão. O que fazemos, no entanto, com este ínfimo tempo que nos resta em que nos é permitido construir um mínimo de individualidade? Simplesmente desperdiçamos este tempo – e portanto este resquício de vida – em banalidades desviantes como os smart phones, redes sociais, etc., conduzindo o pouco que restava à insignificância.

Há, assim, para o homem moderno, uma autêntica morte em vida, uma mera sobrevivência caracterizada pela alternância de fatores de desvio e tão somente. A conclusão que se chega é que na modernidade o próprio ato de pensar é uma raridade. E, ainda, uma raridade que o próprio mercado desestimula, fazendo com que não existam momentos de solidão contemplativa para o indivíduo.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos enfatizar neste artigo a dicotomia existente entre o tempo da modernidade atual e o tempo necessário à reflexão e ao desenvolvimento profícuo do pensamento. Iniciamos a partir de uma indagação formulada a partir da proposição que afirmava que “atualmente não existem juristas como antigamente” e, pudemos concluir que não obstante a afirmação seja verdadeira, apenas retrata a parcialidade de um cenário muito mais generalizado.

A crise do pensamento moderno atinge a totalidade das relações humanas e o que verificamos no Direito se apresenta como um reflexo deste cenário geral.

Não é que não se produzam mais juristas como antigamente. O real problema, como vemos, é o fato de simplesmente não se pensar mais como em outras épocas. Temos um homem fraco e dependente dos desvios do vazio, totalmente, portanto, oposto à atividade de pensar. Não é a toa que o desenvolvimento tecnológico atual, em vez de aprimorar as qualidades intrínsecas do homem, tornou-o, na verdade, absolutamente dependente.

Presenciamos um cenário curioso no qual o homem não consegue dominar a tecnologia, mas ao contrário, é dominado pela mesma. Daí também a valorização dos atributos da própria máquina ao pensamento humano. Homem brilhante para o século XXI é aquele que se limita à reproduções mecânicas e tecnicistas, tal como uma máquina seria capaz de fazer. Por sua vez, a máquina mais avançada da atualidade é aquela que mais incorpora as variáveis do pensamento humano em suas atividades. Esta inversão ressalta bastante o caráter distópico do nosso mundo do século XXI.

Por fim, não esperamos conclusões que caráter absoluto com este artigo. Se ao final da leitura, o leitor se sentir angustiado para com a realidade vivida, posso considerar-me extremamente satisfeito. Isto porque, como evidencia a filosofia heideggeriana, a angústia é o início de qualquer possibilidade de construção de uma vida autêntica. É na angústia que o sujeito contempla a carência de sentido de tudo aquilo que nos é dado como fatores de norteamento da vida. Após tal constatação o sujeito sente tal angústia existencial. Após o estágio de negação pela angústia, cabe ao sujeito construir seus próprios valores, além daquilo que lhe é posto. Trata-se de um caminho de ida e retorno pela angústia, por meio do qual o sujeito terá a possibilidade de construir, em termos heideggerianos, uma vida autêntica.

A autenticidade existencial é, por óbvio, freada pelo não pensamento moderno, uma vez que a angústia já é, por si só, um estágio que demanda a reflexão. Por isso é que os desvios dominam a atualidade. Freiam-se justamente os impulsos existenciais geradores da angústia e que outorgariam a possibilidade de uma vida autêntica.

Ao contrário, continuamos produzindo uma legião de produtos de uma ordem mercadológica coletiva – seres inautênticos, portanto – que sequer se dão conta disso. Em virtude de tanto é que o objetivo deste artigo é, tão somente, o de ser um propulsor à angústia. A autenticidade cabe a cada um.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAL TEÓRICO ESPECÍFICO

BAPTISTA, Fernando Pavan. O tratactus e a teoria pura do direito: uma análise semiótica comparativa entre o Círculo e a Escola de Viena. Rio de Janeiro: Letra legal, 2004;

BEIJATO JUNIOR, Roberto. Teoria Ontológica do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018;

DWORKIN, Ronald W. Felicidade artificial: o lado negro da nova classe feliz. Trad. Paulo Anthero S. Barbosa. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007;

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009;

HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da faticidade. Trad. Renato Kirchner.  Petrópolis: Vozes, 2013;

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Edição Bilingue. Campinas: Editora da Unicamp, 2012;

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Ícone, 2011;

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Lafonte, 2012;

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Trad. Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005;

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo Cesar de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998;

PLATÃO. Fédon. Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

POLIDORI, Marlis Morosini. O papel da universidade no contexto contemporâneo: os desafios da avaliação. Revista Educação, da Universidade Federal de Santa Maria, v. 28, n. 1, jan./jun. 2003, p. 33-47;

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002;

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1994;

WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Rio Grande do Sul: Síntese, 1979.

[1] Hoje: o estado da ciência e da universidade tornou-se ainda mais questionável. E o que acontece? Nada. Escrevem-se brochuras sobre a crise das ciências, sobre a tarefa da ciência. Conta-se de uma pessoa para outra, isto é, diz-se como e pelo que se ouve de que as ciências se acabaram. Hoje em dia há, inclusive, uma literatura própria sobre a questão de como deveria ser. Além disso, porém, nada acontece” (HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da faticidade. Trad. Renato Kirchner.  Petrópolis: Vozes, 2013, p. 40/41

[2] Neste ponto, é necessária a colocação de Willis Santiago Guerra Filho: “Dentro da concepção que se está tentando esboçar aqui sobre o que seja a filosofia importa distinguir dela uma espécie de ‘ciência da filosofia’, uma ‘metafilosofia’, que é uma disciplina que se ocupa de estudar não os problemas filosóficos diretamente, mas antes as soluções que a eles têm sido apresentadas na história da filosofia, ou por um filósofo, ou por uma Escola específica. Isso é o que mais se pratica atualmente sob o pretexto de fazer filosofia, sendo cada vez mais raro encontrar quem se disponha a produzir filosofia ‘de primeiro grau’, quem tenha a coragem de exercitar sua liberdade de fazer isso. Ora, elaborar uma ‘má’ filosofia é muito melhor do que nenhuma, pois já representa pelo menos uma provocação a que se faça uma outra, melhor. Entretanto, em vez disso, os ‘amantes da sabedoria’ preferem contribuir para aumentar o entendimento do modo como determinado filósofo compreende a realidade, o que termina não contribuir muito mais para a nossa própria compreensão da realidade, mas antes para se desviar disso.” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.  07/08).

[3] Sobre a questão da essência ontológica do direito, conferir: BEIJATO JUNIOR, Roberto. Teoria Ontológica do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 110 – 118.

[4] Deve-se ter em mente, neste ponto, que a novidade da tese de Reale não é a existência de três dimensões para abordagem do fenômeno jurídico, isto é, uma dimensão fática, uma dimensão axiológica e uma dimensão normativa. Tal divisão já existia em seu tempo e era bastante apregoada por autores alemães, como por exemplo Gustav Radbruch, em sua Rechtsphilosophie. A distinção, e propriamente a novidade na tese de Reale se dá na relação existente entre cada uma destas dimensões do fenômeno jurídico. Enquanto Radbruch afirmava que a análise de cada uma destas instâncias se daria de forma separada, Reale dirá que há uma constante relação dialética de implicação e polaridade entre cada uma das dimensões, sendo que ao final de cada relação dialética se completará o que o autor chama de nomogênese jurídica. Tal é a novidade da tese tridimensional de Reale.  

[5] Conferir:REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 479-585.

[6] Conferir:  WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1994. Do mesmo autor, conferir também a obra Mitos e teorias na interpretação da lei. Rio Grande do Sul: Síntese, 1979.

[7] Neste ponto cabe apenas destacar que usualmente se aponta a vinculação de Kelsen ao modelo do positivismo lógico do círculo de Viena, como um dos fatores determinantes para o desenvolvimento de sua teoria pura. Tal apontamento, no entanto é equivocado. Havia como ponto de contato entre o modelo epistemológico adotado por Kelsen e aquele do círculo o repúdio de ambos ao conhecimento de índole metafísica. Contudo o próprio Kelsen fazia questão de ressaltar sua não adesão ao método do positivismo lógico. No mais, ao se abordar a norma fundamental kelseniana na teoria pura se identifica, claramente, sua natureza transcendental, de modo que a qualificamos como um pressuposto lógico transcendental de matriz kantiana. Um tal desenvolvimento seria inadmissível aos olhos do positivismo lógico do círculo de Viena, que reservava o conhecimento transcendental e não empírico somente aos objetos ideais típicos da lógica e da matemática. Por fim, vejamos trecho de carta escrita pelo próprio Kelsen, na qual esclarece sua relação com o círculo de Viena: “Em resposta à sua carta de 31 de março, gostaria de informá-lo que eu não pertencia ao assim chamado ‘Círculo de Viena’, no sentido mais rigoroso da expressão. Eu mantive contatos pessoais com o círculo, através de minhas relações com o Prof. Schlick, com o Dr. Otto Neurath, com o Prof. Phillip Frank e com o Prof. Victor Kraft. O que me ligou à filosofia desse círculo – sem ter sido influenciado por ele – foi sua investida antimetafísica. Desde o começo eu rejeitei a filosofia moral desse círculo – como formulada por Schlick em ‘Questões de ética’. Entretanto, os trabalhos, de Phillip Frank e Hans Reichenbach sobre causalidade influenciaram minha opinião sobre esse assunto. O periódico ‘Erkenntnis’ publicou meu ensaio ‘Die Entstehung des Kausalgesetzes aus dem Vergeltungsprinzip’ em seu 8º volume e um ensaio intitulado ‘Causalidade e Retribuição’ em seu 9º volume’. Trecho da carta extraído de: (BAPTISTA, Fernando Pavan. O tratactus e a teoria pura do direito: uma análise semiótica comparativa entre o Círculo e a Escola de Viena. Rio de Janeiro: Letra legal, 2004, p. 34/35

[8] Trata-se aqui de menção a obra “Admirável mundo novo”, uma das principais do autor Aldous Huxley e que descreve o cenário de uma Londres distópica que em muito reflete a sociedade atual e suas tendências.

[9] Tal constatação é feita pelo psiquiatra norte-americano Ronald Dworkin (trata-se apenas de um homônimo do autor norte-americano de direito constitucional e “filosofia” do direito, cuja doutrina se tornou um constante modismo na era do falacioso “pós positivismo” no Brasil) na seguinte obra: Felicidade artificial: o lado negro da nova classe feliz. Trad. Paulo Anthero S. Barbosa. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. A ideia fundamental da obra é, justamente, analisar a questão da infelicidade humana a partir do crescente consumo de antidepressivos nos Estados Unidos da América desde a década de 1960, bem como analisar a forma como os conflitos existenciais que servem de aprimoramento do homem são simplesmente suprimidos pela química, mantendo o sujeito fraco e dependente.

[10] Conferir: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo Cesar de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, em especial os §§ 2, 7 e 8.

[11] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 177, af. 253.

[12] Sobre o tema, conferir: POLIDORI, Marlis Morosini. O papel da universidade no contexto contemporâneo: os desafios da avaliação. Revista Educação, da Universidade Federal de Santa Maria, v. 28, n. 1, jan./jun. 2003, p. 33-47.

[13] Conferir: http://www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises

[14]Conferir:http://www.blogexamedeordem.com.br/chegamos-la-brasil-atinge-a-incrivel-marca-de-1-306 faculdades-de-direito/

[15] George Orwell no prefácio intitulado “a liberdade de imprensa”, escrito para a primeira edição inglesa da obra “a revolução dos bichos”, datada de 1945″.

[16] Veja-se: “temos aqui uma das partes exigidas pela solução do problema geral da filosofia transcendental: como proposições sintéticas ‘a priori’ são possíveis – isto é, intuições puras ‘a priori’, espaço e tempo, nos quais, se no juízo ‘a priori’ quisermos sair do conceito dado, achamos o que pode ser encontrado ‘a priori’ não no conceito, mas na intuição adequada ao ser atado sinteticamente àquele. Por esta razão, esses juízos nunca chegam além de objetos dos sentidos e apenas podem valer para os objetos de uma experiência possível.” (KANT, Crítica da razão pura. São Paulo: Ícone, 2011, p. 44. Ainda, para a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, conferir as páginas 10/11 da mesma obra. Ainda, na mesma obra kantiana, acerca das intuições puras do tempo e espaço: “Queremos provar que as nossas intuições são apenas reproduções de fenômenos, que não percebemos as coisas como são em si mesmas, nem as suas relações são como apresentadas a nós e que, se tirássemos o nosso sujeito ou somente a formação subjetiva dos sentidos em geral, desapareceriam toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo, pois tudo isso, como fenômeno, não pode existir em si, porém apenas em nós.

Permanece-nos totalmente desconhecido o que há com os objetos em si e desligados dessa receptividade da nossa sensibilidade. Somente conhecemos deles o modo que temos de notá-los; modo que nos é especial e não tem de concernir necessariamente a todo ser, mas sim a todo homem.

É com esse modelo de percepção que temos a ver unicamente.

Tempo e espaço são as formas puras dessa percepção e, a sensação em geral, a sua matéria. Podemos conhecer aquelas apenas ‘a priori’, ou seja, antes da percepção verdadeira e por isso são chamadas intuição pura; a última, contudo, é aquilo que em nosso conhecimento a faz chamar-se conhecimento ‘a posteriori’, querendo dizer intuição empírica. Aquelas fazem parte da nossa sensibilidade de maneira absolutamente necessária, e seja de que tipo forem nossas sensações, estas podem ser bem variadas.

Mesmo se pudéssemos elevar essa nossa intuição ao grau supremo de clareza, não chegaríamos mais perto da natureza dos objetos em si: pois em todo caso apenas conheceríamos inteiramente nosso modelo de intuição, ou seja, nossa sensibilidade, e esta sempre sob as condições de tempo e espaço originariamente ligados ao sujeito.” (p. 37/38).  

[17] Não é de hoje, no entanto, que se aponta a dificuldade no tempo para o pensamento. No diálogo platônico de Fédon (ou da imortalidade da alma) vemos uma passagem na qual Sócrates enuncia a dificuldade do tempo para a filosofia em virtude de o corpo dirigir-se sempre aos desejos sensíveis e destes tornar-se dependente. Conferir: PLATÃO, Fédon.

Roberto Beijato Junior